Saúde em tempos de pandemia
- Categorias COVID-19, Debates, Eventos, Novidades
- Data 7 de setembro de 2020
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Nesta crônica, são apresentadas livres reflexões sobre a mesa 2 do Seminário Reações Religiosas à Covid-19 na América Latina, que contou com as participações de César Ceriani (UBA/Argentina) como mediador, e de Nadège Mézié (Unicamp/Brasil), Florencia Chapini (Unicamp/Brasil), Alejandro Frigerio (UCA-CONICET/Argentina).
Saúde em tempos de pandemia:
como o Estado, a medicina e as religiões/espiritualidades mobilizam ou são mobilizadas por ela
O seminário Reações Religiosas à Covid-19 na América Latina foi pensado tendo em vista observações parciais que o Laboratório de Antropologia da Religião pôde identificar em movimentos de determinados grupos sociais – principalmente religiosos – frente à pandemia. No Brasil, devido à atual situação político-social, pudemos delinear três eixos que chamavam atenção: o primeiro se referia à reinvenção das práticas religiosas; o segundo perpassava sentidos e moralidades da pandemia com relação a religião e espiritualidade; e o terceiro dizia respeito às controvérsias públicas suscitadas pela pandemia.
A segunda mesa do evento tratou sobre moralidades e controvérsias públicas, trazendo luz a novos elementos para se pensar. Desde já é interessante destacar que as pesquisas de Florencia Chapini e Nadège Mézié tratam de contextos e assuntos distintos mas conseguem potencializar e diversificar nossas análises. A primeira focalizou a temática da “espiritualidade” desde ambientes médicos institucionais, como ligas e associações, no Brasil. Já Mézié falou a respeito das (faltas de) controvérsias públicas entre religião e Estado no Haiti. A terceira fala, do antropólogo argentino Alejandro Frigerio, pretendeu ser uma explicação mais geral da relação entre religião/espiritualidade e uma cosmovisão biomédica baseada em diferentes graus de holismo e desencantamento do mundo. Alejandro pautou a necessidade de levar em conta o contexto nacional para aplicação do modelo explicativo que montou, e acreditamos que os relatos de campo de Mézié e Chapini, desde Haiti e Brasil, corroboram essa ressalva.
Uma das “tarefas” das religiões e das espiritualidades (formas religiosas não convencionais, não dogmáticas e/ou não sistematizadas) é fornecer um, digamos, código de conduta para habitar este planeta. Quando pensamos em espiritualidades – e aqui a seara é grande – comumente esse código de conduta é baseado em um caminho de evolução espiritual. As coisas que acontecem conosco, portanto, são ferramentas (e oportunidades) para essa evolução. É nesse sentido que a pandemia recente da Covid-19, como nos lembra Florencia Chapini, torna-se uma oportunidade e a espiritualidade atua como um meio para enfrentarmos a situação, especialmente através de práticas de autoconhecimento.
Fazendo pesquisa em encontros virtuais de associações médicas e palestras de professores e coordenadores de ligas acadêmicas, ela pôde notar alguns aspectos interessantes sobre como esses profissionais encaram a pandemia – um momento de desespero, desamparo, medo, fragilidade. Curioso notar que todos esses centros e grupos citam como referência o neuropsiquiatra austríaco Viktor Frankl e sua experiência nos campos de concentração nazistas. Para o neuropsiquiatra, a espiritualidade e a busca de um sentido da vida são fundamentais para se manter vivo, principalmente em momentos de grandes dificuldades. Configura-se assim uma espécie de “pedagogia da pandemia” – ela aparece, principalmente, como uma oportunidade para o autoconhecimento. Nessa visão, por meio da espiritualidade, teríamos a possibilidade de sairmos melhores dessa situação.
Viajando para outro cenário, com a antropóloga Nadège Mézié, vemos como a pandemia, agora relacionada a igrejas pentecostais e neopentecostais no Haiti, é mobilizada como uma oportunidade para o atual governo demonstrar sua força e competência – diferentemente do Brasil, aliás, onde o governo parece se empenhar em demostrar uma grande incompetência político-administrativa. Tendo em vista um contexto político-social bastante conflitivo no período que antecedeu a pandemia, a pesquisadora esperava um período pandêmico igualmente conflitivo. No entanto, o presidente, que foi alvo de inúmeras manifestações no período pré-pandemia, aproveitou o período de crise sanitária para demonstrar que era qualificado para lidar com situações críticas. Nesse sentido, no dia 22 de março, o presidente do Haiti tomou inúmeras medidas de prevenção ao coronavírus, fechando o comércio, escolas e templos. Nos dias que se seguiram, profetas cristãos pentecostais e neopentecostais desafiaram as medidas e foram presos. Para Mézié, era o indicativo de que outros grupos religiosos também desafiariam as normas impostas pelo Estado. Ao contrário, o Estado, com uma “mão dura”, por assim dizer, conseguiu submeter às religiões ao seu controle e alinhá-las às normas impostas. Com isso, grande parte dos movimentos religiosos passaram de inimigos a aliados do atual governo na luta contra o coronavírus.
Se, no primeiro caso, temos um aparente alinhamento entre espiritualidade e o discurso biomédico; no segundo caso, a partir do Haiti, podemos ver um alinhamento (ainda que imposto) entre Estado e religião. Mais quais os motivos de tais alinhamentos e desalinhamentos? Principalmente se considerarmos os eixos religião e saúde, refletidos nas tensões entre religião/ciência e religião/Estado. O pesquisador Alejandro Frigerio nos lembra que a religião também tem algo a dizer sobre a saúde. O tema é onipresente nas atividades e discursos religiosos há muito tempo, apesar da moderna separação, e conflito, entre religião e saúde – principalmente quando a ciência busca o monopólio desse saber. Assim, Alejandro propõe um modelo que pretende explicar os alinhamentos e diferenças entre o pensamento biomédico e diferentes tipos de visões holistas, baseando-se no grau de “encantamento” delas. Numa escala que vai de bem-estar (baixo grau de encantamento) até as religiões populares (nível mais alto de encantamento), modulações na relação de si com o sagrado se tornam importantes para definir o grau de desencantamento e também sua adaptabilidade ao sistema biomédico.
Ou seja, quanto mais encantada é uma religião maior o grau de conflito com o sistema biomédico – que evidentemente não pode acatar como explicação médica a influência de seres sobre-humanos. A medicina aparece então como um controle social do religioso. Uma esfera fechada na qual a intromissão religiosa é inadmissível. O pesquisador nos recorda que essa tensão é muito presente na Argentina. Todas as religiões baseadas em sistemas de cura tiveram conflitos com a área médica – amparados por uma política e um Estado laicos. Novamente o Estado aqui, assim como no Haiti, aparece como um mediador desse conflito – ou ainda como um outro elemento conflitante. As religiões ou visões holistas de mundo menos encantadas não entram em conflito com a cosmovisão biomédica porque eles compartilham mais ou menos as mesmas noções de corpo, mente e natureza.
Se formos aproximar o modelo de Frigerio à fala da Chapini, podemos ver que o modelo pode funcionar. De fato, num ambiente institucional como associações e ligas de médicos e profissionais da saúde, parece haver uma preferência pela “espiritualidade”, que se liga a noções de corpo, mente e self. Um discurso holista mas pouco encantado, como é o caso de muitas espiritualidades contemporâneas, que pode atuar junto com o discurso médico na medida em que elementos (práticas) como meditação e autoconhecimento são explicados neuropsicologicamente como fundamentais em um processo de cura. O caso pesquisado por Mézié é emblemático porque mostra como fatores político-sociais são importantes nesses alinhamentos e conexões parciais entre religião e biomedicina. Nesse caso, apesar do crescente clima de tensão dos primeiros dias de medidas governamentais, a mediação do Estado foi o que permitiu que houvesse uma ação coordenada das religiões junto à biomedicina. Diferentemente, por exemplo, do Brasil, onde a força política da chamada bancada evangélica foi capaz de gerar um desalinhamento entre ciência e religião – a despeito de serem mais ou menos encantadas – assim como um conflito entre ciência e Estado. Vimos, por exemplo, religiões populares como umbanda e candomblé, com um considerável grau de “encantamento”, alinharem-se e respeitarem muito mais o discurso biomédico do que religiões que poderiam ser consideradas menos “encantadas”, como alguns setores evangélicos e grupos católicos conservadores. Se, no Haiti, o Estado se alinhou ao discurso biomédico, forçando, por assim dizer, as religiões a obedecerem às medidas restritivas impostas; no Brasil; o Estado, alinhado às religiões, forçou, por assim dizer, o discurso biomédico, gerando uma enorme controvérsia pública sobre a necessidade do confinamento. Seriam, tais tensões e diferenciações, motivadas por um Estado mais, ou menos, laico em relação a religiões mais, ou menos, “encantadas”? Ou existem outras forças em jogo que complexificam a equação?
Podemos nos questionar a respeito da pertinência de estabelecer esses modelos explicativos. Podemos, como bem demonstrou a fala de Chapini, estabelecer relações com outros tipos de “visões” que não somente a biomédica como seria o caso do “neoliberalismo” e de outras forças e interesses políticos. Por que, afinal, Viktor Frankl é referência para os grupos de médicos que trabalham com espiritualidade? Não há espaço aqui para entender essa relação. Teríamos que investigar a importância do neuropsiquiatra nos cursos de formação dos profissionais da área do Brasil. Mas não é difícil entender que essas “novas espiritualidades”, amparadas muitas vezes em práticas corporais (yoga, meditação) e extremamente centradas no “poder” individual para vencer traumas (“o poder da mente”, o “self”) encontram terreno fértil no espírito capitalista e neoliberal. Assim como a religião, essas espiritualidades também podem ser (ou serem usadas) como um negócio altamente lucrativo.
Podemos também pegar o caso de Mézié e demonstrar como o modelo explicativo se complica quando o Estado se faz presente e acaba “forçando” uma aliança improvável. Ou então o caso brasileiro, onde um Estado, cético em relação a ciência, animado por motivos escusos, introduz novos elementos ao modelo de Frigerio – o alinhamento entre o discurso biomédico e as religiões, além do fator “encantamento”, complexifica-se a partir de motivações políticas e econômicas. De qualquer forma, modelos assim podem ser bons para pensar e nos ajudam a estabelecer continuidades, “afinidades eletivas”. São bons se levarmos em conta que têm suas limitações e também seus efeitos.
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