Os novos espaços pandêmicos para as antigas tradições religiosas
- Categorias COVID-19, Debates, Eventos, Novidades
- Data 31 de agosto de 2020
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Nesta crônica, são apresentadas livres reflexões sobre a mesa 1 do Seminário Reações Religiosas à Covid-19 na América Latina, que contou com as participações de Joanildo Burity (Fundaj/Brasil), como mediador, Cristina Zúñiga (El Colégio de Jalisco/México), Renée de la Torre (CIESAS-Ocidente/México), Magali Cunha (Bereia/Brasil).
Uma imagem da Virgem de Zapopan guiando uma carreata pelas ruas de Guadalajara, no México, enquanto igrejas e casas fechavam seus portões para a rua, para evitar o trânsito de pessoas, mas abriam suas portas tanto para serem vistas como para receberem as bênçãos; padres paramentados, portando água benta, ostensórios, imagens de santos e sobrevoando cidades de norte a sul do Brasil em helicópteros; o Papa Francisco caminhando sozinho pela praça de São Pedro, no Vaticano; minaretes pedindo para que os muçulmanos na Argentina fiquem em casa ao invés de irem para as mesquitas; a peregrinação até Meca tornada opcional para quem não mora em Meca. Seja nas cidades cernes do catolicismo e do islamismo ou pelos interiores da América Latina, a pandemia de COVID-19 obrigou as religiões a criarem novas práticas adaptadas a novos espaços.
Afinal, em um mundo confinado pelo vírus, qual o lugar da religião? Essa questão, que parece ser nova para a atual geração, é antiga e repetida na tradição cristã e na islâmica. Como bem apontou Silvia Montenegro, muçulmanos na Argentina argumentam que o profeta do Islã já prescrevia regras para epidemias e, tanto o isolamento como a higiene recomendadas contra a COVID-19, coincidem com uma série de práticas cotidianas dos muçulmanos. Do mesmo modo, como destacou Renée de la Torre, a Igreja Católica já dispõe de um arsenal iconográfico de proteção especial contra epidemias, tal qual a Virgen de Zapopan ou a Santa Maria del Popolo, as quais já foram apontadas por fiéis como responsáveis por salvar as populações mexicanas e italianas no passado. Nas duas religiões abraamicas, bastou que as tradições fossem resgatadas para que as soluções estivessem dadas.
Contudo, houve uma diferença considerável em relação às epidemias do passado, e foi de ordem tecnológica. Tratando-se da primeira pandemia na era da internet, com um amplo acesso remoto a vídeos e transmissões ao vivo, o domínio da tecnologia se tornou uma peça-chave nessa mediação com o sagrado. Na avaliação de Joanildo Burity, quem melhor soube usar os meios virtuais conseguiu mais exposição e, logo, mais público e poder.
Nesses quesitos, como bem salientou Cristina Zuñiga, o destaque se deu para as instituições que já dominavam as linguagens e os aparatos tecnológicos. Como foi o caso da Más Vida, igreja cristã pós-denominacional mexicana, que, adepta dos aplicativos para celulares e dos sermões em formato popular no Youtube, já tinha toda a infraestrutura necessária para o domínio do espaço online, que foi potencializado pelo confinamento físico. O mesmo se deu, por outro lado, por quem já dominava as redes digitais de informações falsas. Como apontou Magali Cunha, a pandemia coincide com a infodemia, com toda a rede de desinformação formada desde as eleições brasileira e estadunidenses de 2018, e ganhou força no negacionismo dos dados e do discurso científico sobre a pandemia, muitas vezes com apoio declarado de líderes religiosos brasileiros.
Levando em consideração esse movimento, no qual a autoridade de discurso se “desinstitucionaliza” em prol de uma rede difusa que embaralha informação e desinformação, o que Joanildo Burity aposta como efeito da pandemia é o movimento contrário: o de institucionalização. E isso não se dá por uma ordem moral ou ética imposta pela crise sanitária, e sim por uma questão técnica de desigualdade de acesso a esse mundo virtual imposta pelo elemento surpresa. O que o início da pandemia demonstrou foi como as instituições religiosas, seja por competência em seus quadros seja por acesso a recursos, dominaram os meios de comunicação com mais agilidade e competência do que os indivíduos sem esse aparato institucional.
Ao dominarem o meio virtual estética e espetacularmente, as instituições religiosas reconquistaram certa autoridade que vinha sendo perdida. Porém, só o passar do tempo e a duração dessa nova normalidade poderá mostrar se essa autoridade será mantida e se o movimento “desinstitucional” conseguirá conquistar os meios através de novas formas estéticas. Levando em consideração a rapidez que as novas tecnologias impõem, assim como a pluralidade estética que é oferecida, é muito provável que isso aconteça.
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