Figurações religiosas do movimento conservador
- Categorias COVID-19, Debates, Eventos, Novidades
- Data 14 de setembro de 2020
- Comentários 0 comentário

Nesta crônica, são apresentadas livres reflexões sobre a mesa 3 do Seminário Reações Religiosas à Covid-19 na América Latina, que contou com as participações de Ronaldo Almeida (UNICAMP/Brasil) como mediador, e de Fellipe dos Anjos (UNIMESP/Brasil), Paulo Barrera (UNIMESP/Brasil) e Michel Gherman (UFRJ/Brasil).
Como uma comunidade social se reconhece e é reconhecida enquanto tal? Ou, como a identidade de um grupo é formada? Embora o debate seja longo, a contribuição do antropólogo norueguês Fredrik Barth sobre os estudos de etnicidade é um ponto de partida para pensar essas questões. Como ele argumentou a respeito da identidade étnica, ela não está dada em um a priori cultural ou biológico, sendo antes o resultado de processos sociais – em outras palavras, a identidade é sempre formada relacionalmente. Assim, é preciso que nos atentemos para como grupos produzem suas próprias fronteiras identitárias, demarcando critérios de reconhecimento na medida em que tentam se diferenciar de outros que, por sua vez, são muitas vezes marcados negativamente. No caso de alianças formadas por comunidades de diferentes pertenças religiosas e países distintos, vemos como alinhamentos são engendrados em torno de posicionamentos comuns e transversais a temas morais e políticos.
É sobre essa questão que podemos compreender as contribuições dos painelistas Fellipe dos Anjos, Michel Gherman e Paulo Barreira no debate sobre reações religiosas à Covid-19. No caso de dos Anjos, seu interesse se centrava em como um alinhamento de discursos e práticas entre o bolsonarismo e setores do campo evangélico vem ocorrendo. Ao propor que entendamos essa confluência a partir das formas de governo das populações, o expositor argumenta que o ponto em comum fundamental entre esses campos é a mobilização de elementos de uma lógica sacrificial. Ou seja, seria comum e estruturante no discurso bolsonarista e de parte dos evangélicos o argumento de que há um mal rondando a sociedade, e que esse mal pode ser reconhecido em certos grupos sociais que contribuem para a desagregação social a partir de seus comportamentos e/ou discursos: a comunidade LGBTQIA+, o movimento negro, os grupos de esquerda, etc. Diante desse diagnóstico, o gerenciamento dessas populações se daria propriamente por seu expurgo / sacrifício, de modo que a sociedade pudesse se reagregar em torno dos supostos verdadeiros elementos em comum que a une e que se opõem à existência desses grupos. Essa confluência seria ainda mais alargada no caso do manejo à pandemia, uma vez que a falta de esforços do governo federal brasileiro em seu controle vem sendo justificada pela fala de que “alguns terão de morrer”.
Por sua vez, Michel Gherman se centrou nos vínculos estabelecidos entre os grupos conservadores bolsonaristas, cristãos e judeus, na formação de uma comunidade baseada em uma aliança moral, epitomizada na reivindicação daquilo que o expositor cunhou de uma “Israel imaginária”. Desse modo, se a lógica sacrificial não parece estar em operação aqui, vemos como a demarcação de critérios morais de reconhecimento se dá também mediante a oposição a certos grupos que não se enquadram em um ideal branco, armamentista, etc. Sendo essa comunidade formada por uma aliança provisória, Gherman retraça as fissuras que começaram a surgir mediante a experiência da comunidade judaica ultraortodoxa ao redor do mundo, em seu fracasso sanitário em lidar com o avanço dos casos de coronavírus. É a partir dessa experiência fracassada que a aliança brasileira entre grupos conservadores religiosos começa a se desestruturar, a partir da recusa dos grupos judeus locais a manterem políticas de abertura dos templos religiosos, mesmo com a pressão exercida por grupos cristãos conservadores.
Ainda que conexões internacionais comecem a ser estabelecidas na fala de Gherman, é na exposição de Paulo Barreira que a relação estabelecida entre grupos religiosos na América Latina e o trumpismo estadunidense é abordado. A partir de sua exposição sobre a reação do campo religioso à Covid-19 no Peru, vemos como os evangélicos conservadores assumem uma posição distanciada frente a outros grupos religiosos. Desse modo, enquanto o governo peruano convocava uma oração virtual junto do Consejo Interreligioso del Perú, com participação de lideranças de várias religiões (católicos, evangélicos, judeus, mórmons, etc.), certos setores evangélicos conservadores continuaram negando a existência do vírus. De acordo com o expositor, o alinhamento desses setores se dava junto à autoridade de Trump, na presidência dos Estados Unidos, se contrapondo assim ao posicionamento de outros grupos evangélicos, que se colocavam junto ao Estado peruano, naquilo que Barreira chamou de uma “laicidade de colaboração”. Dessa forma, a despeito de um posicionamento local mais alinhado, vemos como uma fissura no campo evangélico peruano ocorre a partir de alianças transnacionais, semelhantes às alianças entrevistas por dos Anjos e Gherman a nível nacional.
É desse modo que podemos dizer que a mesa se deteve sobre a constituição de identidades a partir de situações de alianças entre grupos religiosos e forças políticas conservadoras. Nos casos brasileiros, se por um lado há uma aliança clara entre governo federal e grupos evangélicos conservadores, por outro, como salientou Ronaldo de Almeida no debate, esse alinhamento deve ser pensado em relação ao contexto mais geral do governo Trump nos Estados Unidos e de um renovado conservadorismo político. No horizonte desses grupos religiosos, há a oposição a comportamentos e discursos considerados impróprios, como no caso exemplar do uso da bandeira de Israel em manifestações a favor de Bolsonaro. Dessa forma, embora a pandemia do novo coronavírus possa produzir certas rupturas entre os grupos que formam essa comunidade moral conservadora (como no caso trazido por Gherman), parece que a emergência sanitária ocorre mais como uma situação de explicitação ou radicalização de alianças. Em certo sentido, vemos o mapa do conservadorismo religioso sendo desenhado em nossa frente.
Tag:Brasil, covid-19, evangélicos, judaísmo, Peru, reações religiosas
Você também pode gostar
IV Jornada de Estudos das Religiões (IV JER): Convergências e Tensões Contemporâneas nos Campos Religiosos
O Núcleo de Pesquisa em Educação e Cibercultura em parciaria com o Grupo de Pesquisa Corpo Trans da Universidade Federal do Piauí convidam a comunidade acadêmica e seus a participar da IV Jornada de Estudos das Religiões (IV JER): Convergências …
Seminário “Laicidade na Universidade: sentidos e controvérsias”
O Laboratório de Antropologia da Religião convida a comunidade acadêmica da Unicamp e a comunidade externa para participarem do Seminário do LAR, com o tema “Laicidade na Universidade: sentidos e controvérsias”. Organizada por Mariana de Carvalho Ilheo (PPGAS/Unicamp) e Olívia …
