O coronavírus e as igrejas evangélicas brasileiras: controvérsias em torno do isolamento social e do (não)fechamento dos templos
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- Data 21 de março de 2020
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Fotografia de Eduardo Anizelli/Folhapress.
Em um breve monitoramento sobre as reações das igrejas evangélicas do Brasil diante da pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19), é possível afirmar de antemão que os evangélicos têm lidado de diferentes formas com a questão, incluindo-se o significado do momento e as ações das igrejas diante da crise, o que envolve uma série de temas, como interpretações teológicas, uso de tecnologia, posição política, contato social, aspecto financeiro e disputas de poder, temas ainda por analisar. Diante da complexidade e da atualidade dos temas, trata-se aqui de um texto muito mais descritivo do que analítico, mas que identifica uma controvérsia (Montero, 2012) em torno da necessidade de isolamento social e do (não)fechamento dos templos evangélicos, o que pode ser observado no caso de milhares de pastores anônimos, no nível das grandes lideranças evangélicas do Brasil e no plano das lideranças políticas ligadas a essas igrejas.
De um lado, há aqueles que defendem que as medidas de prevenção sugeridas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), pelo Ministério da Saúde e pelos governos estaduais e municipais devem ser seguidas à risca, com a suspensão dos cultos e o fechamento dos templos. De outro, há os que relativizam os efeitos do coronavírus (Covid-19) e entendem que os serviços religiosos devem ser mantidos, a despeito das orientações das esferas governamentais.
Alguns líderes de igrejas, sejam elas históricas ou pentecostais, têm sustentado a necessidade de manter os templos fechados. A Igreja Batista da Água Branca em São Paulo, liderada pelo pastor Ed René Kivitz, já realiza seus cultos sem a presença de fiéis desde a última semana. Inclusive, uma imagem do pastor pregando para as cadeiras vazias, com o culto sendo transmitido pela internet, circulou pelas redes sociais acompanhada de elogios. O conselho da Igreja Presbiteriana da Barra da Tijuca (RJ), liderada pelo pastor Antônio Carlos Costa, aprovou uma medida para ceder o templo para a União, estado e município, a fim de que o local seja usado em prol do benefício público, como hospital de campanha, por exemplo. Em São Paulo, a Igreja Betesda tomou medida semelhante, disponibilizando as dependências do templo para serem usadas como “enfermaria, posto avançado de saúde, centro de distribuição de alimentos ou atendimento a grupos vulneráveis, como pessoas em situação de rua ou com dependência de drogas”. Após cancelar todas as atividades presenciais, como tem sido feito por várias outras igrejas, o pastor Ricardo Gondim ressaltou que a preocupação com a saúde das pessoas seria mais importante do que qualquer prejuízo financeiro que a igreja possa ter com o encerramento momentâneo das atividades.
Entre as grandes igrejas pentecostais, cujos líderes têm maior projeção na esfera pública, houve uma tendência inicial de defender que as igrejas permanecessem abertas, com interpretações distintas sobre a pandemia. Enquanto o apóstolo Agenor Duque (Igreja Plenitude do Trono de Deus) interpretou a pandemia como um “golpe chinês”, com base em uma suposta profecia de um livro publicado em 1981, o apóstolo Valdemiro Santiago (Igreja Mundial do Poder de Deus) convocou uma reunião no último dia 15 de março de 2020 para oferecer proteção aos fiéis através de óleo “ungido” ou “sagrado”, além de afirmar que se esforçaria para oferecer um salmo 91 impresso – com versículos comumente associados à proteção – e uma toalhinha ungida com a inscrição “Sê tu uma bênção”.
Já o pastor Abner Ferreira (Assembleia de Deus Ministério de Madureira), em um texto publicado no site evangélico Gospel Prime, sustentou que fechar as igrejas seria colocar a “grande comissão em quarentena” e que as reuniões evangélicas nos templos seriam “inegociáveis”. Por grande comissão, ele se referiu ao evangelho de Marcos, capítulo 16, versículo 15, onde se lê: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda a criatura”.
Enquanto o missionário R.R. Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus) fez trocadilho com o vírus, chamando-o de “coroa do diabo”, o bispo Edir Macedo (Igreja Universal do Reino de Deus) afirmou que o coronavírus (Covid-19) seria uma tática de Satanás para impor medo sobre as pessoas. Segundo ele, para as que se tornam “fracas” e “débeis”, “qualquer ventinho que tiver” torna-se “uma pneumonia”.
Entretanto, o caso mais significativo é o do pastor Silas Malafaia (Assembleia de Deus Vitória em Cristo). Diante das controvérsias e das recomendações para fechar os templos em certos estados, Malafaia foi enfático em afirmar que as igrejas não deveriam cerrar suas portas. Nesse ínterim, o pastor se envolveu em uma controvérsia com uma personagem importante do mundo evangélico brasileiro, a pastora e cantora Ana Paula Valadão (Igreja Batista da Lagoinha), que se posicionou contra a continuidade dos templos abertos, insinuando que existiriam interesses financeiros por trás das negativas de algumas denominações em cancelar as atividades. Sem citar nominalmente a cantora, Malafaia foi absolutamente incisivo em respondê-la, dizendo que ela não teria autoridade espiritual ou moral para fazer esse tipo de insinuação, pois já teria cobrado altos cachês para cantar em igrejas. Cabe lembrar que, em outros momentos, Malafaia já saiu em defesa de Ana Paula Valadão, em oposição à Macedo, por exemplo (Guerreiro, 2016).
Em alguns vídeos nas redes sociais, o pastor, psicólogo e empresário disse que não estava minimizando a doença, mas que haveria uma “paranoia” em torno dela, além de citar tanto o direito à liberdade religiosa quanto o suporte psicológico que a igreja ofereceria para os fiéis, tratando-a como “agência psicológica”, “hospital para os desesperados” e “hospital de Deus para a área espiritual e para a área emocional”. Ao mesmo tempo, Malafaia citou exemplos de lugares e momentos históricos nos quais os cristãos tiveram que usar a estratégia da “desobediência civil” frente às ordens governamentais.
Nesse sentido, é importante observar que a controvérsia acerca do fechamento dos templos também chegou ao plano político. A pastora e Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves encontrou-se com líderes das 20 maiores denominações brasileiras e com o presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). No encontro, a pastora/ministra ressaltou a necessidade de os padres e pastores colaborarem com medidas contra o coronavírus (Covid-19), tais como: cuidar da higiene pessoal com o uso de álcool em gel, higienizar os utensílios dos templos, fazer cultos em locais abertos, suspender atividades extras e manter distância e contato pessoal, evitando os abraços e apertos de mãos tão comuns nos encontros evangélicos e católicos. Embora, em princípio, não tenha sugerido o encerramento total das atividades, a pastora/ministra afirmou estar preocupada com o problema e alertou para que não se minimize os efeitos do vírus, como teria sido feito na Europa, o que parece evidenciar uma postura distinta dos grandes líderes pentecostais, muitos deles apoiadores do governo de Jair Bolsonaro, do qual ela faz parte.
O presidente da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, pastor e deputado federal Silas Câmara (Republicanos-AM), disse que os parlamentares da frente apoiavam as medidas do governo federal, incluindo a decretação do estado de calamidade pública, mas sustentou a hipótese de que os templos deveriam permanecer abertos, mesmo com as medidas de prevenção. O argumento central para não fechar os locais de culto é a ideia de que a fé é um “fator de equilíbrio psicoemocional” que ajudaria os fiéis a superar “angústias”, o que mostra um discurso absolutamente alinhado com Malafaia e Bolsonaro.
Em entrevista ao Programa do Ratinho, na rede de TV SBT, o presidente da República do Brasil declarou ser contra uma suposta “histeria” da mídia, dizendo que as igrejas deveriam permanecer abertas e que os pastores e padres deveriam saber conduzir seus cultos, sendo a igreja o “último refúgio” para as pessoas preocupadas com a crise. A seu ver, a garantia constitucional de culto e o direito à proteção aos locais religiosos seriam motivos suficientes para os governadores e prefeitos não proibirem as reuniões.
Aqui, cabe lembrar que vários governadores e prefeitos recomendaram ou decretaram a suspensão de cultos e missas. O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), onde foi decretado estado de emergência de saúde pública, chegou a entrar com uma ação na justiça para suspender os cultos das igrejas, sob pena de multa de 10 mil reais. Entretanto, a ação do MPRJ foi negada pelo juiz plantonista, com a alegação que ainda não haveria uma determinação legal do Executivo ou Legislativo para proibir os cultos.
Em princípio, João Doria (PSDB), governador de São Paulo, havia apenas recomendado a suspensão das atividades presenciais nos templos. No entanto, em 20 de março, a justiça paulista atendeu a uma recomendação do Ministério Público de São Paulo (MPSP), determinando a “suspensão e proibição da realização de missas, cultos ou quaisquer atos religiosos no estado de São Paulo, que impliquem reunião de fiéis em qualquer número, sob pena de multa diária no valor de R$ 10 mil”. Nesse mesmo dia, junto com Bruno Covas (PSDB), prefeito de São Paulo, o governador anunciou que adotaria medidas mais rigorosas contras as igrejas que não suspendessem seus cultos.
Escrever sobre um assunto tão complexo, ainda mais no calor do momento, certamente deixará muitas lacunas e imprecisões, pois surgem novas notícias de todos os lados. Só para se ter uma ideia, enquanto finalizo esse breve texto, a Igreja Pentecostal Deus é Amor acabou de anunciar a suspensão de suas atividades.
Antes das medidas mais duras, como a proibição dos cultos em São Paulo, o site da Igreja Universal do Reino de Deus lançou um comunicado oficial com novas diretrizes, advertindo que continuaria com seus templos abertos em todo o mundo, exceto nos locais onde as autoridades decretarem o fechamento, e que transmitiria os cultos online. Ao mesmo tempo, há orientações sobre higienização das mãos, manutenção de distância física nos cultos, novas práticas litúrgicas (como evitar a imposição de mãos) e aconselhamento para que os maiores de 60 anos não se dirijam aos templos.
Após as ações dos políticos e Ministérios Públicos estaduais, Malafaia reconheceu que suspenderia os cultos em suas igrejas, elencando três motivos para tal: 1) “decreto do estado de emergência”; 2) “redução drástica de ônibus e sistemas urbanos de transporte”; 3) “ação judicial”. De acordo com o pastor pentecostal, ele suspenderia os cultos, mas ampliaria o horário em que os templos ficariam abertos, a fim de receber pessoas que quisessem ir orar, além de transmitir um “culto mais enxuto, sem ninguém presente” pelo site da igreja.
Para finalizar, é importante ressaltar mais uma vez que as diferentes posições aqui elencadas indicam que o campo evangélico possui diferentes nuances, às quais os pesquisadores da religião nem sempre se atentam. Como ressaltei no início do texto, há ainda milhares de vozes anônimas que precisam ser ouvidas, com distintas interpretações e posturas acerca da crise relacionada ao coronavírus (Covid-19). Seja como for, é preciso continuar monitorando os novos fatos e movimento dos atores sociais elencados, cujas práticas rituais nunca se caracterizaram por isolamento social.
Referências:
GUERREIRO, Clayton. A gira do “reteté”: Uma análise das disputas sobre o “pentecostalismo legítimo”. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, 2016.
MONTERO, Paula. Controvérsias religiosas e esfera pública: repensando as religiões como discurso. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 32(1): 167-183, 2012.
https://edition.cnn.com/2020/03/13/us/dean-koontz-novel-coronavirus-debunk-trnd/index.html
https://jovempan.com.br/noticias/brasil/justica-silas-malafaia-coronavirus.html
https://www.gospelprime.com.br/nao-coloque-a-grande-comissao-em-quarentena/
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