Quem são os católicos com direito de decidir?
- Categorias Artigos, Católicas pelo Direito de Decidir, Debates
- Data 3 de dezembro de 2020
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Lucas Vanni
Na última semana de outubro, o Centro Dom Bosco (CDB), do Rio de Janeiro, ganhou visibilidade na imprensa em função de ter provocado o judiciário a se manifestar quanto ao direito de as “Católicas pelo Direito de Decidir” poderem ou não se identificarem como católicas. Algumas semanas depois, o centro carioca voltou a figurar na imprensa. Pessoas ligadas à entidade foram indiciadas por terem tentado impedir a celebração de uma “missa afro” no dia da Consciência Negra do ano passado. A gravação do ocorrido, divulgada pelo próprio Centro Dom Bosco, retrata três momentos: antes da missa, quando jovens ligados ao CDB, tentam convencer o padre de que aquela celebração não deveria acontecer, pois não estava de acordo com as leis litúrgicas da Igreja Católica; durante a missa, que transcorre, enquanto um grupo permanece de joelhos rezando o rosário silenciosamente; e, ao fim da missa, quando, depois da oração de um ato de desagravo pelas ofensas e sacrilégios que teriam sido cometidos, o grupo é confrontado, na saída do templo, pelos fiéis que participavam da missa.
A ação de grupos católicos conservadores no espaço público não é novidade no Brasil. A Tradição, Família e Propriedade (TFP), associação fundada por Plinio Corrêa de Oliveira, em São Paulo, nos anos 60, notabilizou-se por seu combate ao comunismo, seus estandartes e maneirismos aristocráticos. Apesar da influência que a TFP exerceu, no Brasil e no exterior, na formação de católicos conservadores, ela passou quase desapercebida pelo radar das ciências sociais da religião, mais atentas às grandes movimentações que o catolicismo sofria no Brasil. Depois do Concílio Vaticano II, o que chamava a atenção eram as Comunidades Eclesiais de Base e a influência da Teologia da Libertação na formação do clero e dos fiéis. Além da TFP, no entanto, acontecia no Brasil a confusão envolvendo os Padres de Campos, a formação do grupo Permanência, a instalação de um mosteiro tradicionalista, na serra fluminense, que romperia com a Santa Sé, e, mais recentemente, o surgimento dos Arautos do Evangelho. Tudo isso aponta para o caráter do Brasil como um terreno fértil para um catolicismo de corte conservador.
Se, até o início dos anos 2010, todas essas iniciativas pareciam pontos fora da curva, elementos isolados de uma Igreja que rumava em outro sentido, o panorama tem mudado. Embora não contemos com um estudo estatístico que possa dar uma noção mais precisa do tamanho e da influência do catolicismo conservador no Brasil, alguns sinais indicam para o seu crescimento. As ações do CDB são bastante relevantes, nesse sentido. Além disso, nas redes sociais pululam pequenas editoras que produzem material católico – em geral, comercializado exclusivamente através da internet –, clubes de assinatura de livros católicos, cursos sobre os mais diversos assuntos do catolicismo, lives de missas em latim etc. As redes têm um papel fundamental na formação e aglutinação dos católicos conservadores. Alguns sinais, ainda, são perceptíveis nos detalhes, como nos catálogos das lojas de paramentos litúrgicos. A recuperação de determinadas peças do vestuário dos sacerdotes – como as batinas, os barretes e determinados modelos de casula – são indícios de como essa “conservadorização” se manifesta inclusive na estética católica.
Outra característica dessa “conservadorização” é que se trata de um processo encabeçado majoritariamente por leigos, distanciados da hierarquia eclesiástica. O modelo de grupos de leigos conservadores que se reúnem para rezar e estudar já existe no Brasil há várias décadas. Pedro A. Ribeiro de Oliveira (1985, p. 313) oferece uma descrição das atividades nos círculos das elites intelectuais católicas do início do século passado que se presta a um relato exato do que fazem os grupos contemporâneos: “Leigos começam a ler e estudar a Bíblia, a conhecer Teologia, a discutir a Filosofia Tomista, a participar ativamente da Missa, a recitar orações e cânticos em latim; em suma, começam a ter acesso às crenças e práticas religiosas refinadas, elegantes, bem a gosto de intelectuais”.
É importante, no entanto, salientar a diferença na mudança da postura da hierarquia em relação a esses grupos. O Centro Dom Vital, por exemplo, foi fundado nos anos 20 com o incentivo explícito do Cardeal Leme, então Arcebispo do Rio de Janeiro, e a TFP, apesar de ter sido criada em um momento em que conservadores já questionavam as decisões da CNBB, contava com o apoio de bispos, que a defendiam abertamente de seus detratores. Os grupos contemporâneos, no entanto, tendem a não contar com o apoio dos bispos e de boa parte do clero, enfrentando, por vezes, a sua oposição. Se no vídeo da tentativa de impedimento da “missa afro” é mencionado o apoio do Cardeal Tempesta, o atual Arcebispo, à iniciativa daqueles jovens, esse apoio não foi manifesto pública e abertamente, nem mesmo na ocasião do indiciamento policial deles. Esse distanciamento denota uma espécie de clivagem etária na Igreja Católica brasileira, entendimento esse que é compartilhado entre católicos conservadores: a geração que conduz a Igreja, dos bispos e do alto clero, formada no período imediatamente posterior ao Concílio Vaticano II, é mais progressista que os católicos mais jovens. Estes teriam se aproximado do catolicismo a partir de influências como Olavo de Carvalho, ou mesmo por meio da Renovação Carismática Católica – que Reginaldo Prandi (1997) já prenunciava, nos anos 90, como uma “renovação conservadora” do catolicismo.
Os católicos conservadores, no Brasil, assim como outros conservadores, têm constituído uma frente em uma “guerra cultural”. A questão em torno do nome das “Católicas pela Direito de Decidir” é exemplo disso. Diria que é um exemplo do front extraeclesial dessa guerra, quando são mobilizados o judiciário e a política institucional – representada modelarmente na eleição da deputada federal Chris Tonietto, advogada do CDB –, voltado a pautas morais da sociedade em geral, especialmente as relacionadas aos temas de gênero e sexualidade. A confusão na “missa afro”, entretanto, assume um aspecto mais intraeclesial: o que está em disputa é o modo de celebrar a missa, e as autoridades e normas mobilizadas são unicamente aquelas que se restringem ao ambiente eclesiástico – as leis litúrgicas, o arcebispo, o pároco etc. (E assim permaneceria se a polícia não tivesse sido chamada pelos participantes da missa).
Se a batalha extraeclesial fere a sensibilidade secular de muitos brasileiros, especialmente daqueles que viam nos evangélicos uma ameaça maior à separação entre Estado e religião, a intraeclesial desestabiliza aqueles que tomavam por certa uma “modernização” do catolicismo com o Concílio Vaticano II. Em todo caso, novos atores católicos ingressaram na esfera pública e não estão a fim de passarem desapercebidos.
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Lucas Vanni é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Núcleo de Estudos da Religião (NER) da UFRGS.
Referências:
Prandi, R. (1997). Um sopro do Espírito: a renovação conservadora do catolicismo carismático. São Paulo: Edusp/Fapesp.
Ribeiro de Oliveira, P. A. (1985). Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes.
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Este texto é parte de uma série de publicações que serão realizadas ao longo desta semana nos sites do NER (UFRGS), LAR (Unicamp), Nues (Unicamp). Todos eles tomam como ponto de partida a decisão envolvendo Católicas pelo Direito de Decidir, que as proibiu de utilizar o termo católicas. Com issso, procuramos ampliar a visibilidade e o debate público sobre o tema, assim como consolidar parcerias institucionais que há bastante tempo aproximam esses grupos de pesquisa.
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