Quando o religioso e o político se encontram: a espiritualidade na mobilização de práticas político- pastorais
- Categorias Artigos, NUES
- Data 1 de junho de 2021
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Por Anna Paula Pedra
Há um mês defendi minha dissertação de mestrado intitulada “Cultivando a espiritualidade: o
religioso na prática política dos agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Campos dos
Goytacazes/RJ”, no Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade
Estadual do Norte Fluminense – UENF, sob orientação do professor Fábio Py. A banca
avaliativa foi composta por Carlos Alberto Steil (UFRGS), Ana Costa (UFF) e Rodrigo Caetano
(UENF), cujos comentários colocados se apresentaram enquanto uma grande aula para
mim. A pesquisa, que comecei a desenvolver em 2019, procurou discutir sobre o lugar
ocupado pelo religioso nos contextos de experiência e ação dos agentes membros da
Comissão Pastoral da Terra (CPT) na cidade de Campos dos Goytacazes, localizada na região
Norte-Fluminense do estado do Rio de Janeiro. Procurei identificar quais são os elementos
que estão relacionados e inseridos sob a categoria “religião” na prática dos agentes. Nesta
busca, a “espiritualidade” se mostrou como o termo mais adequado e utilizado no contexto
para designar a prática e experiência do sagrado na CPT. Desta forma, a partir da relação que
esses agentes estabelecem com a religião, tanto em suas trajetórias individuais de fé como
na luta institucional pela terra, procurei compreender suas práticas políticas pelos direitos
sociais da população rural da cidade de Campos.
Para realização da pesquisa foram entrevistados um total de sete agentes, dentre esses, dois
são ex-agentes que fizeram parte da equipe CPT/Campos até o ano de 2012. Três dessas
entrevistas foram realizadas presencialmente em 2019, as outras quatro foram realizadas
remotamente devido ao advento da pandemia em 2020. O trabalho de campo, com o
objetivo de acompanhar a rotina de alguns agentes em seus campos de atuação, contou com
idas constantes ao Assentamento Zumbi dos Palmares entre setembro de 2019 e fevereiro
de 2020. Nesse processo pude constatar que na CPT, o religioso e o político integram um
único espaço. Os agentes da pastoral da terra cumprem uma função político-pastoral
cotidiana apresentando-se dentro e fora do assentamento como companhia ativa na luta
pela Reforma Agrária Popular na região. Para elaboração das atividades, a CPT parte do
princípio de ouvir as comunidades e suas demandas. Atualmente as atividades consistem na
organização da feirinha da roça (que acontece em diferentes locais ao longo dos anos), nos
grupos de saúde para elaboração de produtos fitoterápicos, no trabalho de artesanato com
as mulheres dos assentamentos por meio da utilização de produtos locais, e na Escolinha de
Agroecologia que tem seu funcionamento no Assentamento Zumbi dos Palmares e na
Comunidade Quilombola de Cafuringa.
Uma das propostas da pesquisa foi chamar a atenção para uma forma de cristianismo vivida
por esses agentes que inscrevem diferenças e singularidades importantes em meio ao
conjunto de conceitos e práticas já estabelecidas nesta religião. Ao partir de uma primeira
hipótese de que esses atores pertenciam a alguma vertente do cristianismo – por pressupor
que a CPT é uma organização católica, mesmo que ecumênica – fui surpreendida. Atentei-
me para a presença e frequência da palavra espiritualidade entre os agentes, e como ela
articulava e mobilizava sentidos religiosos e práticas políticas em suas experiências. A
criação de uma pastoral popular como a CPT, a autonomia de cada grupo de agentes e o
modo como esses pensam e agem nela, faz com que emerja um contexto de experiência
singular da religião. A espiritualidade nesse contexto implica a redefinição da prática
religiosa e a polissemia do seu significado.
Analisar esse movimento acrescenta mais evidência à crítica de Talal Asad (2010) sobre a
impossibilidade de se trabalhar com uma definição universal da religião. Sua obra traz uma
contribuição importante, pois nos apresenta mudanças que afetaram a própria natureza da
religião a partir da forma que ela é vivida por um indivíduo, nos auxiliando, neste caso, a
observar de que forma as agentes da CPT reconhecem sua experiência enquanto religiosa. A
partir das narrativas identifica-se que o termo religião já não aparece mais enquanto
definidor de uma identidade espiritual ou de ligação com um conjunto de práticas ligadas a
um corpo doutrinário estabelecido. Mas se referem à espiritualidade para expressar a “não – definição” e a complexidade de suas experiências com o sagrado. A espiritualidade mobiliza
o sentido religioso aberto e íntimo da promoção pela justiça social e pela luta do campo:
Eu fui migrando para a CPT porque eu estava com essa parte da espiritualidade muito
trancada em mim. E todas as reuniões e espaços da CPT, a gente trata também essa questão
da espiritualidade, de pensar um pouco em Deus. A gente tem a luta, mas também tem a
esperança. A gente sabe que tem um Deus que está conosco independente de religião, se vai
ser de matriz africana, católica ou evangélica. A gente comunga da mesma fé em um ser
superior que vai nos dar forças para enfrentar essa conjuntura (AGENTE 1, 2020).
As entrevistas me trouxeram as seguintes questões: a) A maioria dos agentes da CPT
passaram em algum momento de suas trajetórias pela religião institucionalizada, a maioria
deles pelo catolicismo. Nesse processo, b) também se desligaram dessas instituições
religiosas, seja por conta de críticas teológicas ou políticas. c) Outros ainda passaram em
suas experiências por um processo de ressignificação conceitual sobre a religião – não mais
vista sob a ótica institucional dogmática – passando a ser vivenciada dentro de uma atitude
mais ampla e holística da espiritualidade e sua inserção no cotidiano da luta social. Um dos
agentes faz a seguinte afirmação:
Eu gosto de pensar na vivência da espiritualidade da CPT porque a religião em si não é muito
a nossa preocupação, é mais a espiritualidade por conta dessa possibilidade da esperança.
Aí, quando você cultiva a espiritualidade, parece que você consegue ir para a além das
instituições porque as instituições engessam bastante. Em alguns momentos elas
atrapalham muito (AGENTE 2, 2020).
Identifico que para esses atores, todo esse processo de repensar ou estruturar o que se
entende por espiritualidade esteve intrinsecamente ligado à sua inserção na CPT. A
Comissão Pastoral da Terra se constitui em suas experiências como o local de expressão,
manutenção e prática dessa espiritualidade não só pela dimensão macroecumênica da CPT,
mas porque essa espiritualidade está diretamente vinculada à ação política que adentra
num respeito universal da diversidade de crença e sobre o direito humano a terra.
Sendo assim, os agentes que foram entrevistados nesta pesquisa apontaram a presença da
espiritualidade enquanto anterior e até mesmo independente da religião, construindo assim
uma espiritualidade instituída sobre a diversidade e a legitimidade de expressão de
qualquer crença, mesmo sendo parte da ramificação do catolicismo institucional. O papel da
mística na CPT, por exemplo, aproxima-se de alguns sentidos muito difundidos na categoria
“espiritualidade” na modernidade, como uma experiência do sagrado livre da autoridade e
dos espaços institucionais. Mesmo assim, a experiência religiosa destes agentes não se dá numa busca dentro de si, em um movimento de interiorização ou individualidade espiritual,
mas na fronteira com o outro, no serviço prestado às comunidades e assentamentos aos
quais acompanham. Logo, este é um caso oportuno para se pensar a intersecção entre
espiritualidade e o engajamento político, tendo em vista que a espiritualidade para esses
agentes se experimenta nas atividades correntes do mundo secular.
Rolemberg (2020) afirma que os agentes da CPT inovam em relação às categorias de
pensamento e prática do cristianismo. Não privilegiam um anúncio explícito da palavra
bíblica como antes era confeccionado, mas privilegiam um testemunho solidário por meio
da ação e do serviço prestado a essas comunidades. Sendo assim, a centralidade da
experiência religiosa desses agentes não está em uma relação íntima, solitária e contratual
da crença, nem nas celebrações litúrgicas meramente confessionais – embora participem
delas – mas na espiritualidade que envolve as questões cotidianas do direito a vida.
Ao propor a relação desta espiritualidade dos agentes da CPT/Campos com a promoção da
Reforma Agrária Popular, procurei pensar o estabelecimento de uma noção de
espiritualidade que parte de um engajamento político, ou seja, que estabelece uma relação
com o espaço público a partir das ações que são promovidas por esses agentes nesta região.
Essas ações têm a ver com uma espiritualidade vivida por meio da ação e do serviço na
sociedade. Essa prática de inserção na formulação dos problemas públicos muitas vezes
produzem imagens seculares, atrelando a pastoral em uma “sinuca de bico”: para os
movimentos sociais a CPT é “religiosa” demais; e para a Igreja a CPT é política e secularizada
e pouco pastoral. Posto isso, podemos obter uma melhor compreensão do fenômeno
religioso em sua dinâmica conceitual, política e histórica, não só para a CPT enquanto
organização, mas para a diversidade de atores e agentes que compõem a pastoral da terra.
Como se dão as relações com a religião/espiritualidade e sua prática política na busca pelos
direitos sociais dos assentados.
Partindo do princípio de Latour (2012) de que as coisas, grupos sociais ou as instituições não
estão prontas ou feitas a priori, mas estão se fazendo, minha intenção não se deu na direção
de definir o que era a espiritualidade para os agentes da CPT/Campos. A intenção foi
trabalhar os processos de formulação e contradições, ou mesmo compreender de que forma
a espiritualidade articula e mobiliza politicamente não como categoria, mas como um
fenômeno dinâmico que sempre se renova. Posso dizer que os resultados desta pesquisa,
longe de encerrar as discussões, apontam para outras indagações no que diz respeito a esse
processo. Esses agentes estariam mesmo fazendo uma separação rígida entre
espiritualidade e religião ou essa espiritualidade seria uma nova forma de
institucionalização? Algumas falas apontam para a permanência desse caráter teológico-institucional, ao afirmarem, por exemplo, que “a CPT é uma igreja viva”, o que pode apontar
tensões internas entre os agentes ou a própria Igreja: seria essa uma nova forma de
espiritualidade que pluraliza o catolicismo? Em outras palavras, tendo em vista que a CPT
segue sendo uma organização vinculada à igreja católica, esses agentes rompem com a
instituição, ou há uma reconfiguração institucional a partir do que eles chamam de
espiritualidade?
***
Referências Bibliográficas:
ASAD, Talal. A construção da religião como uma categoria antropológica. Cadernos de Campo,
São Paulo, n. 19, p. 263-284, 2010.
LATOUR, Bruno. Reagregando o Social: uma introdução à teoria Ator-Rede. Salvador: Editora
da Universidade Federal da Bahia (Edufba); Bauru: Editora da Universidade do Sagrado
Coração (Edusc), 2012.
ROLEMBERG, Igor. Onde está o religioso? Mística e Espiritualidade no político, no público e
no secular. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 40(3): 49-71, 2020.
Anna Paula Pedra é graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
mestranda em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF),
tendo desenvolvido pesquisa em religião e questão agrária no Brasil. Atualmente
desenvolve pesquisa em antropologia social com foco nas relações entre espiritualidade e
cultura popular.
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