Papa e o vazio
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- Data 29 de março de 2020
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A praça de São Pedro, coração do Vaticano, completamente vazia. Sob uma chuva leve, formando poças que refletem as luzes da cidade, o Papa Francisco caminha sozinho subindo as escadarias até a entrada da Basílica Maior. Na frente dos pilares de mármore, em um palco com luz amarela, o pontífice faz uma celebração em que concede indulgência plenária a todos os católicos. Algo que só deveria acontecer no natal e na páscoa, mas que a pandemia torna extraordinário.
A cena é tão apocalíptica quanto cinematográfica. Digo isso tendo em vista que o impacto foi grande na imprensa e nas mídias sociais. Em um mundo em quarentena, as fotografias oficiais da Santa Sé foram replicadas incansavelmente. Fotografias em que o vazio é ressaltado, em que Francisco é um ponto branco caminhando no meio do nada, uma silhueta vestida de branco no alto de uma escadaria em que abençoa toda a Via della Concilliazone até a entrada do Castelo Sant’Angelo, outrora sempre cheias, mas agora sem uma alma viva.
Nas minhas redes sociais, povoadas por católicos e ateus convictos em quaresma e quarentena, a reação parecia a mesma de ambos os lados, um misto de medo e admiração. O que todos ressaltaram era sempre ele, o vazio. Quase que ao mesmo tempo, memes e gifs foram surgindo tanto pela piada como pelo seu uso político.Além de amigos próximos perguntando se escreveria algo a respeito e, enfim, o pedido do site do Laboratório de Antropologia da Religião para fazer o mesmo.
Eu resisti, por um tempo, dizer alguma coisa, porque, aliás, muito pouco foi dito. Acompanhei toda a transmissão de aproximadamente uma hora e, em boa parte dela, imperava o silêncio verbal. Digo silêncio verbal porque há sim outros sons: dos sinos, do órgão, da chuva. Há também o sermão do Papa, muito bem elaborado em cada palavra, justamente elogiando o silêncio de Deus, mas nada disso parece importar ao final do rito. O que importava, de fato, era ver e sentir o que era mostrado. Para aqueles que pediram textos, encaminhei vídeos. Afinal, era uma experiência estética e sensorial.
Ao não ter muito o que dizer, e me forçar a dizer algo antropologicamente, foram três referências que rapidamente me vieram à mente: Thomas Csordas com sua “Assímptota do Inefável”; Bruno Latour com seu imperativo de “não congelarás a imagem”; Birgit Meyer com sua pergunta de “como capturar o uau?”.
Concordando em parte com os três, o que a bênção extraordinária pela pandemia do Urbe et Orbi demonstra é como a religião, e mais especificamente o catolicismo, opera e produz efeito através dos cinco sentidos. Em um momento de terror na Itália, de falta de resposta para o caos do novo coronavírus, com a imprensa replicando imagens de hospitais cheios e cadáveres empilhados, a Santa Sé ofereceu imagens de vazios. Vazios capazes tanto de acalmar como alertar, confortar como prestar luto, causar admiração e medo. E é aí que está a chave do que teria a dizer: como oferecer esses tantos sentimentos através do vazio? O vazio pode ser muitas coisas, mas aquele vazio conseguiu unir, ou ao menos cativar a atenção, de pessoas longe ou fora do catolicismo.
A minha impressão é que havia uma refinada direção de arte, de cenografia e de fotografia que tornou aquele espetáculo possível, na transmissão, ao vivo. Ao questionar em uma rede social quem teria sido o diretor, em tom de admiração, uma desconhecida logo replicou: “D-E-U-S”. Sem questionar a inspiração divina, contudo, disse apenas que eu me referia a pessoas por trás da produção do rito. Buscando por isso, então, Encontrei alguns nomes pouco conhecidos, de funcionários altamente capacitados da rede de televisão do Vaticano, mas logo percebi que o caminho era outro. Em relação às fotografias, rapidamente encontrei a autora das mais impressionantes: Yara Nardi, da Reuters.
Com um olhar treinado em coisas religiosas, eu arrisco dizer que o vazio e o silêncio só puderam ocorrer tendo em vista as presenças e os sons, ali materializados. E levando isso em conta, eram muitos os diretores. O palco central foi feito por ninguém menos que Gian Lorenzo Bernini, um dos grandes mestres do barroco italiano, que desenhou aquela praça em que papas caminham há mais de quatrocentos anos, justamente com o objetivo de causar a ilusão de óptica que torna aquela fachada tão imponente e ao mesmo tempo próxima do público. Já as colunas de mármore de pano de fundo para o rito, como o brasão e o nome deixam evidente e em negrito em seu topo, foram encomendadas pelo Papa Alexandre VII que tem como maior título “o primeiro urbanista de Roma”, já que foi esse o grande legado que deixou para a cidade. Todo esse cenário, nos termos de Victor Turner, ao mesmo tempo que materializa a sede da Igreja Católica Apostólica Romana é também uma referência estética que marca e influencia a produção artística posterior em grande parte do mundo. São termômetros de beleza que ultrapassam os limites religiosos e que, por isso, são capazes de sensibilizar quem não se identifica com o catolicismo ou não simpatiza com o papa. Como é o caso de Nelson Rodrigues, ao dizer que “Deus só frequenta as igrejas vazias”.
Se tudo isso era cotidianamente experienciado pelas milhares de pessoas que ali passavam, o vazio proporcionado pelo isolamento as tornou mais evidenciadas. Sem as centenas de turistas com bastões de selfie e as filas quilométricas para comprar água ou passar nos detectores de metais, o cenário ficou despido de pessoas, cru ou como que abandonado. Quem se tornou protagonista foi o mármore que, com a escolha daquele dia e horário da benção, contou com a ajuda da água da chuva e da luz do pôr-do-sol.
Fora isso, a meu ver, outras duas coisas conseguiram se tornar protagonistas e o foram com a interferência do sucessor de Pedro: Papa Francisco ordenou que fossem trazidas para o Vaticano, e apoiadas nas colunas da Porta Santa da Basílica, nada menos que o Crucifixo de São Marcelo e o Ícone da Protetora do Povo Romano. Não por acaso, as duas devoções são altamente populares entre os romanos, justamente por oferecerem proteção a cidade em tempos de dificuldade. O primeiro, considerado milagroso por ter sobrevivido a um incêndio mesmo sendo de madeira, tem em sua trajetória uma procissão de quinze dias durante uma epidemia que assolou a cidade em 1522. O segundo, visitado periodicamente por Francisco desde o início de seu pontificado, foi trazido da Palestina pela mãe do Imperador Constantino, e teria sido pintado por São Lucas em um pedaço de uma mesa feita por Jesus Cristo na marcenaria de São José. Assim como o crucifixo, em diversos momentos da história o ícone foi levado em procissão pelas ruas da cidade visando a cura de pestes.
Em uma cena que certamente apavorou restauradores e historiadores da arte ao redor do mundo, a cruz de madeira de mais de quinhentos anos e o ícone bizantino de quase dois mil anos foram tirados de seus cofres de proteção para ficarem expostos sob a chuva daquele dia.
Em um dos momentos mais sensíveis da cerimônia, esses dois objetos foram beijados e contemplados em silêncio pelo líder da Igreja Católica que, assim, demonstrava que em certas ocasiões o valor artístico e historiográfico das coisas pode ser subjugado em função da sacralidade. E que, em última instância, é ele que tem poder sobre o destino delas. Como o mote da bênção é ser de Roma para o Mundo, o Papa interagia com materialidades altamente expressivas da cidade para as levar para o mundo. E é aí que entra a transmissão.
Como as imagens não negam, a praça estava vazia, mas havia exceções: na base da escadaria, sobre os arcos e dentro da Basílica haviam cinegrafistas, quase camuflados, e suas câmeras eram o mundo. Foi através das suas lentes e seus enquadramentos que todas as coisas romanas chegaram até as casas em quarentena, incluindo a minha. Sem público presencial, a cerimônia foi feita especialmente para o público virtual, e mesmo que o Papa não tenha olhado diretamente para as câmeras, era para elas que o rito era feito. O ponto alto da cerimônia foi conseguir traduzir a experiência estética presencial, tão bem dominada por aquela instituição há tantos séculos, em uma experiência virtual de qualidade. Toda a magnitude daqueles espaços e ritos, feitos com camadas geológicas de profundos simbolismos que não caberiam em texto algum, chegou na casa de milhões de pessoas através de telas de celulares, computadores e televisões. Sem negar a oposição ao protestantismo histórico ao monopolizar as mediações do divino, com grande estilo e pompa, a quarentena levou o catolicismo a era das lives e aprimorou os ritos à estética do streaming.
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Na tarde de sexta-feira em que o evento acima analisado ocorreu, coincidentemente fazia um tempo úmido e frio na cidade de Campinas, o que amplificou a sensação de identidade que muitos de nós sentiram. De fato, a “identidade” é algo que completa, tantas vezes faz transbordar um sentimento de conforto, e contempla tudo quanto não conseguimos expressar em palavras, sons, gestos, porque seria mera reprodução de um objeto.
Em minha perspectiva, enquanto telespectadora das cenas históricas da benção “Urbi et Orbi” – e cristã -, uma mudança paradigmática se deu: o silêncio do espaço físico existiu, mas a repercussão virtual do sentimento identitário foi sonora exatamente porque, diante da mudança conjuntural das regras de comunicação, em que o isolamento ocupa lugar das externalizações, falar – ou escrever, neste caso – tornou-se a ferramenta de que nos valemos para expressá-lo; e a estética foi elemento essencial para perfazer esta identidade, porque mostrou, aos que creem, o poder divino em ação, a força da fé e a ressignificação de uma tradição; enquanto, aos não-crentes, revelou a obra artística, a gravidade pandêmica, o vazio e, quiçá, a esperança íntima na ação sobrenatural. Foi um evento ritualístico para cristãos, mas também um episódio histórico para a memória da humanidade, outra identidade com o cenário atual – a pandemia.
O vazio, marcante e elucidado, percebido por católicos e não católicos se configura na “não vida social”, na ausência de relações, troca com pares, trânsito de corpos, sons paralelos, escassez de dinamicidade, movimento, carência de vida, dentre outros elementos imensuráveis que compõem ordinariamente o espaço físico da praça de São Pedro, o vazio; existente no interior das vidas pessoais e sociais, se tornou característico do período pandêmico, presente como o catolicismo nos seus cinco sentidos, para católicos que não veem mais os corpos transitarem no interior de suas igrejas, não sentem a emoção de estarem corporalmente presente na celebração, sem toques as figuras sacras e aos pares, pois contatos não são mais permitidos, não há paladar porque as hóstias não são mais distribuídas no momento da comunhão, não ouvem-se choros de crianças ou passos transitarem nas missas durante a celebração e mais longínquo se torna o cheiro dos incensos no processo da aclamação do evangelho.
Vazio que apresenta a estrutura física elucidada no seu estado de “não vida social”, na presença das ausências, no “silêncio verbal” ensurdecedor que acompanhou toda a celebração da indulgência plenária. O mesmo vazio que modifica agora os processos da vida em sociedade, mudando concepções de tempo, emoções, espaço, coletividade, dentre outras neste período de quarentena, que nos impactou e impactará socialmente, economicamente, psicologicamente e historicamente, provocando marcas e propondo-nos novos modos de ser e viver em sociedade.
Gostei muito do texto e da sensibilidade na percepção e análise do evento. Deixo aqui alguns questionamentos que não sei bem se estão corretos. Primeiramente, o catolicismo, por ter como representante maior e portador do sagrado o Papa, consegue unificar suas igrejas através de uma posição mais homogênea e oficial, orientando a ritualização para o respeito ao distanciamento. No entanto, no caso de outras religiões, acredito que a mensagem esteja sendo mais difusa. Na Igreja Evangélica, por exemplo, os múltiplos mediadores da fé parecem direcionar os posicionamentos de suas igrejas de acordo com os seus. Curiosamente, me parece que as igrejas mais midiáticas são justamente aquelas em que, em sua grande maioria, não se tem respeitado o distanciamento indicado pela OMS.
A experiência estética e sensorial da Igreja Católica, por sua vez, me parece ser mais material, no sentido de que está apoiada em imagens e prédios, e, consequentemente, mais difícil de ser alcançada, já que o acesso depende do deslocamento às igrejas. No entanto, a sua transformação em experiência virtual parece ter sido mais bem sucedida, justamente pelo caráter imagético tão bem passado e explorado nas transmissões. Demais religiões, como evangélica ou umbanda, por exemplo, talvez apoiem o sentimento religioso a elementos mais difíceis de se alcançar virtualmente, como o canto coletivo, a aproximação de corpos para troca de bençãos, etc.
Por fim, gostei muito do trecho: “O ponto alto da cerimônia foi conseguir traduzir a experiência estética presencial, tão bem dominada por aquela instituição há tantos séculos, em uma experiência virtual de qualidade”. Fico impressionada com a capacidade da Igreja Católica em reinventar-se em tempos de crise e superar as dificuldades se adequando a novas realidades. Para quem já se reestabeleceu frente à modernidade, ao desencantamento, à secularização, à dessecularização (pra desespero de Berger), uma pandemia parece-me ser apenas mais um capítulo metamórfico.
O texto aborda o misto de medo e admiração causado pela celebração de Páscoa realizado pelo Papa Francisco no Vaticano. A estética do vazio e do silêncio presente na celebração parece ter conseguido expressar bem o momento pelo qual o mundo – e em especial, a Itália – passava.
Godoy consegue nos transportar ao ambiente da celebração única, nos dizendo sobre seus símbolos, seus tempos, seus sons, bem como o efeito em seus espectadores – católicos ou não. O autor também remete ao caráter inovador da celebração no que se refere à era do streaming: a celebração se adequa com sucesso às atuais formas de divulgação de conteúdo em plataformas digitais.
Eu particularmente gostei de vários aspectos do texto, notadamente sobre a “tradução” do significado dos símbolos utilizados e sobre a utilização de acertadas técnicas de comunicação em plataformas eletrônicas.
Embora o texto aborde com tanta riqueza os aspectos estéticos e o valor religioso do rito, o que mais me chamou a atenção foram duas coisas: a forma como foi propagado e as circunstâncias que tornam este ritual, feito para datas bem específicas, tão necessário para os católicos neste momento.
Através do uso dos serviços de streaming, foi possível que, mesmo que com a praça e a basílica vazios, muitos que compartilham dessa fé pudessem sentir algum alívio, sentir que seu deus estava ao seu lado, mesmo em um período tão caótico e desesperador. Isso me leva a outro ponto comentado por Godoy na última frase de seu texto, que o rito pôde ser adaptado às novas tecnologias sem se afastar da estética tradicional do rito realizado, tendo como única adaptação essa “benção à distância” por conta da pandemia.
Li o texto uma vez e o retomei outras 4 vezes. Na primeira, algo chamou minha atenção, mas pouco me importei, pois ali me concentrava quase exclusivamente no texto. Na segunda e terceira vezes minha atenção foi requerida novamente e percebi que ali poderia residir o sentido para essa reflexão. E, por fim, na quarta vez, debrucei-me para contemplar uma das fotografias da Yara Nardi, a primeira depois do vídeo.
Nela é possível ver o Papa em meio ao vazio físico buscando trazer alguma luz àqueles que, nestes tempos, sentem o vazio do existir. Esse iluminar que esclarece à luz da razão e também da fé, vem no sentido de encontrar a todos, não apenas os fiéis, mas também os descrentes ou desacreditados, pois acredito que este Francisco fale para todos e não apenas aos seus, e proporcionar-lhes um pouco de luz e abrigo existencial.
Parado ali e pronunciando cuidadosamente cada palavra, Francisco, de branco como a clarear, parece colocar-se como uma daquelas estrelas que guiavam os antigos navegadores naquela imensidão de água, sujeira, trevas e incertezas. E nesse agora, quando a certeza do incerto demonstra sua face mais dura e cruel, é de suma importância a presença de líderes, religiosos ou não, que levem um pouco de acalanto como bem o fez Francisco.
Excelente reflexão. Parabéns Adriano..
O enigmático vazio do último Urbi et Orbi descortina o significado deste peculiar momento pandêmico vivido pela humanidade. Apesar de extraordinária, a bênção impetrada apenas na Páscoa e no Natal revela o período apocalíptico imposto pela COVID-19. A imagem do Sumo Pontífice Católico em meio a um ensurdecedor silêncio – apesar da delicada chuva que cai, chancela a importância da situação, onde o fim evidencia o começo: “No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra, entretanto, era sem forma e vazia”. (Gênesis 1: 1-2).
A imagem consegue além de captar, unir no mesmo instante, tanto a ontologia quanto a escatologia do dogma católico, sem deixar de fora o sagrado redentor, quando duas das mais importantes relíquias da Igreja Romana são expostas às intempéries do mundo.
Sem sombra de dúvidas, um ápice relevante.
Gostei muito do texto e das reflexões propostas. Ao rever o vídeo (belíssimo), muitas lembranças do dia da emissão me vieram à cabeça, lembro-me da repercussão mundial. Contudo, as minhas reflexões nasceram da compreensão do vídeo e do incômodo que o título do texto me causou, uma espécie de epifania foi desencadeada. O vazio é real e físico, traz consigo a dimensão do sentido literal, isto é, a ausência de pessoas, mas também carrega a potência do sentido metafórico, pois o vazio refletido pelas imagens do local reverbera no vazio existencial, no vazio vivenciado pela humanidade no contexto de pandemia. A narrativa traz uma perspectiva dual, ou seja, é sombria e melancólica, e, ao mesmo tempo, é esperançosa e resignada. Isso é reforçado pelo uso de símbolos indenitários ligados à proteção e à superação de dificuldades, santos e artefatos religiosos simbólicos, ícones históricos que remetem ao domínio do Catolicismo. Ademais, a chegada do Papa, solitário e cabisbaixo, também reforça a dimensão do vazio e da necessidade de introspecção para rever valores, ideologias, anseios, hábitos, escolhas, em resumo, posturas diante da vida e do mundo. É válido ressaltar que essa imagem da chegada do Papa, ao meu ver, fortalece a simbiose entre o material e o imaterial, isto é, ele é um dos ícones do Catolicismo, trata-se de uma figura simbólica detentora de grande poder, capaz de demover os fiéis e dar vida aos rituais da Igreja Católica.
Acredito que o texto retrata como a nossa sociedade se liga com o elemento espiritualidade e religiosidade, obviamente marcado pelo contexto da pandemia. Mas, não se restringe a isso, já que demonstra como essa relação tem se estruturado a tanto tempo. Uma vez que todo o cenário não seria apelativo aos sentimentos das pessoas, se toda aquela ritualística não tivesse forte significado na vida humana. É claro que a chuva e o jogo de luzes acrescenta um tom poético que sensibiliza até os olhares mais endurecidos, mas que não teria tanto impacto se não fosse a figura vestida inteira de branco, caminhando pela praça São Pedro vazia, trazendo para muitos o sinal do conforto e da esperança. Afinal, a fé cumpre um papel que a séculos se discute, mas que ainda constitui, principalmente para os fiéis, um mistério.
Estamos vivendo um momento de incertezas causadas pela pandemia do Novo Corona virus, não sabemos quando a doença irá embora de nossas vida, do noticiário, quando o confinamento acabará, quando nossa rotina voltará a normalidade e nem sabemos como será a normalidade pós corona vírus e tampouco sabemos dimensionar os problemas que serão sequelas, porém durante esse tempo pelo menos esperamos respostas, seja da OMS, do Estado, da Igreja, a isso ainda somado com os nossos problemas pessoais, assim cada um elabora uma resposta à sua maneira. Ainda em tempos de Corona presenciamos a companhia mais presente das tecnologias, das redes sociais na nossa rotina para ajudar ou substituir nossos papéis na sociedade, por exemplo, o modo de trabalho, para os trabalhadores que podem fazer home-office , as compras de de delivery, exercícios físicos online, aulas online, entre outros; estão sendo uma tentativa de suprir vazios, no trabalho, consumo, educação, saúde e demais areas…ou seja, tentativas de se encontrar formas possíveis em momento de distanciamento social causada pelo vírus, distanciamento esse que causou este vazio no Vaticano na praça São Pedro, deixando o Papa sozinho em meio a “solidão” conformando uma celebração sem fiéis, pela qual parece ser incompleta, causa estranheza ao nosso olhar, mas ao mesmo tempo cria a nossa imagem da Igreja em tempo de Corona, porém neste momento o papa cumpre o papel de nos dar a resposta da Igreja estabelece um clamar de esperança na ação litúrgica tanto para os fiéis quanto para os não fieis que estão distantes fisicamente, mas que estão presentes através de lentes de cameras , fotos, filmagens criando uma nova estética da igreja na pandemia e em contrapartida a Igreja dando a sua resposta a pandemia para todos.
O texto faz uma análise extremamente bela e competente de um dos momentos mais emblemáticos desta pandemia. A reconstituição histórica de todas as figuras que construíram aquele cenário de 27 de março de 2020 no Vaticano, bem como as reflexões de como o catolicismo, apesar de alguns alegarem sua decadência final, continua influente e poderoso para as mídias de todo o mundo, foram feitas com um primor ímpar pelo autor e enriquecem ainda mais a “experiência” de assistir à “live” da cerimônia.
Eu gostaria de ressaltar, no entanto, um aspecto específico do texto: a admiração e a perplexidade de todas as pessoas do planeta diante do vazio da praça São Pedro. Com efeito, uma praça cuja sua situação normal é viver lotada de gente, se um dia ela aparecesse vazia, naturalmente seria um evento extraordinário, digno de espanto. Todavia, a perplexidade em relação ao vazio não só se verifica nessa constatação objetiva da situação da praça, como ela também adentra o estado espiritual/psicológico de muitas pessoas atingidas pelas imagens da cerimônia “Urbe et Orbi”: em um mundo em que a percepção do tempo é cada vez mais veloz, a produção de informações e imagens é cada vez mais acelerada, e o tempo dedicado à reflexão interior é cada vez mais escasso, o fato de alguém parar durante 1 hora (e parar ainda mais em um momento de grandes feridas universais, com caos sanitário, econômico e social) para simplesmente contemplar o silêncio e o vazio causou um incômodo generalizado enorme, uma vez que tal atitude também nos lembrou de olhar para nossas próprias feridas internas. Em outras palavras, mais do que perdoar o mundo e buscar curar as feridas da pandemia de covid-19, a bênção do líder da Igreja Católica, no vazio completo, principalmente nos relembra das feridas existentes em nosso interior e de como nós as temos ignorado pela correria e pela agitação do dia a dia “normal”. Como disse o padre Marcos Sabino, da Congregação Salesiana, “Deus fala conosco através do silêncio”. Ao conviver uma hora em tranquilidade com o vazio, o Papa Francisco causou espanto ao mundo, não por evidenciar os horrores já conhecidos de 2020, mas sim por revelar que nossas próprias angústias ainda persistem dentro de nós, mesmo que não queiramos reconhecê-las.
A experiência protagonizada pelo líder católico foi, sem sobra de dúvida, singular. Como assinala Godoy, palavras são pouco para descrever a magnificência contida nas imagens e sons (e também no silêncio) transmitidos mundialmente na ocasião de celebração da chamada indulgência plenária aos católicos. O impacto do espetáculo transcende o círculo do catolicismo, se espraiando e se manifestando através de múltiplas sensações entre pessoas das mais diversas religiões e crenças. A escolha do papa de trazer para o cenário objetos ritualísticos carregados de sentido simbólico também contribuiu fortemente no fenômeno da celebração, conotando proteção em momentos difíceis, como explica Godoy. De modo geral, o vazio circunstancial observado na transmissão da missa, tanto no que se refere à ausência de público quanto no que toca o sentimento de incertezas e inseguranças frente à pandemia, produz uma gama de sensações das mais diversas, sensações que dificilmente poderiam ser expressas verbalmente, como Godoy deixa claro.
O texto ronda sentimentos acerca do vazio instalado no rito de cerimônia.
Esse vazio foi materalizado não somente através do ambiente, mas também através da ausência de relações sociais, agora substituído por relações virtuais, consequentemente, evidenciando o vazio existencial que se instalou no contexto da pandemia.
Achei a cerimônia muito impactante exatamente por conseguir, mesmo que virtualmente, produzir uma densidade aos sentimentos não só acerca do ambiente da igreja católica, quanto uma reflexão sobre o momento em que vivemos.
O texto ajuda a pensar nessas imagens tão impactantes não apenas do ponto de vista de seus significados mas também do de sua construção imagética. Enquanto produto estético, materializam um discurso de oximoros simbólicos sobre o momento atual: o silêncio grita e o vazio obstrui. Ver o “papa do povo” como “um ponto branco caminhando no meio do nada” serve, desta forma, como síntese audiovisual da gravidade da crise pandêmica. Godoy destaca, no entanto, o processo de produção do produto estético, que envolve tanto as decisões cinematográficas específicas da live quanto a milenar construção de uma imagética católica que permite que seus símbolos alcancem até as pessoas não religiosas de diversos lugares do mundo. Ao que parece, quase nada ali é contingente, mas sim planejado em minúcias. A partir do duplo movimento que o texto permite captar podemos entender melhor o quanto a legitimidade de imagens como as da Igreja Católica faz com que sejam instrumentos eficazes de intervenção pública, sobretudo em contextos de temor generalizado como o presente.