Um sobrevôo na respiração: algumas indicações bibliográficas
- Categorias Artigos, NUES
- Data 14 de outubro de 2021
- Comentários 0 comentário

Juliana Boldrin
Nós não vemos nema palpamos, no entanto, isso que não vemos nem apalpamos – isso é o concreto.
Mateus Aleluia
A filósofa feminista Luce Irigaray (1999) fala em esquecimento do ar. A sua invisibilidade e insolites teriam-no relegado à indiferença na produção de conhecimento, fundada na lógica do sólido. De fato, investigar a teoria social acerca da respiração e do ar é deparar-se constantemente com a afirmação de que foram temas negligenciados. Nos últimos anos, com o aumento das doenças respiratórias em escala global, a respiração ganhou espaço, principalmente na saúde pública e na antropologia médica e da saúde.
Essas lacunas, assim como o alargamento do escopo para além da saúde, têm sido objeto de recentes esforços teóricos. Nesse sentido, contextos específicos de pesquisa trouxeram importantes contribuições para a temática, como é o caso da análise sobre o papel do vento e dos ares na compreensão do espírito, da alma e do estar vivo entre os Khoisan (LOW, 2007); das reflexões sobre habitar e conhecer o mundo (INGOLD, 2010); das práticas de meditação (PACCILLO, 2020); do incorporamento da cultura militar ao respirar como um soldado (LANDE, 2007) e, ainda, dos estudos sobre fumantes e tabaco (RUSSEL, 2019; HARMAN et al., 2020). De maneira mais sistematizada, destacam-se o projeto britânico interdisciplinar Life of Breath e a recente coletânea “Interdisciplinary Perspectives on Breath, Body and World”, organizada por Rebecca Oxley e Andrew Russell (2020).
As duas iniciativas buscam consolidar esse campo em emergência, as suas potencialidades para desestabilizar dualidades (SKOF; HOLMES, 2013) e para reposicionar as conexões e
relações entre corpos humanos, ambientes e mais-que-humanos. No entanto, a necessidade de olhar para essas materialidades invisíveis – o ar e a respiração – não está pautada simplesmente na identificação de uma lacuna bibliográfica, mas, sobretudo, na sua centralidade política. A respiração (e também os pulmões) tem sido considerada desde uma perspectiva interseccional, como uma materialidade através da qual políticas são performadas (GÓRSKA, 2016). Nesse caminho, Irma Allen (2020) mistura de modo interessante uma política ecológica com a análise interseccional, argumentando que somos corpos respirando no ar, tornando as duas dimensões co-dependentes. Afinal, respirar é uma porosidade corporal que envolve sujeira, poluição, indústria, ambientes de trabalho tóxicos, desmatamento, plantas, partículas suspensas, bactérias, vírus. Ou seja, entidades com as quais os corpos estão em constante interação e com as quais estão enredados os diferentes pulmões que se fazem com raça, gênero, etnia e classe (BRAUN, 2014; ALLEN, 2020).
A respiração não é homogênea: “Onde você respira importa, quem respira conta” (ALLEN, 2020, p. 14). “I can’t breathe” foram as últimas palavras ditas por Eric Garner em 2014 e por George Floyd em 2020. A frase é um ponto de articulação entre “o material e o inefável” (JOLAOSHO, 2021), que traz à tona a articulação máxima entre respiração e vida e as políticas de sufocamento e asfixia em torno da população negra, do seu direito historicamente desigual à respiração (MBEMBE, 2020) e da violência da polícia, de modo que se tornou o principal símbolo da luta antiracista e expressão das políticas desiguais da respiração.
Para finalizar, cabe dizer que a forma deste sobrevôo bastante panorâmico ressoa meus interesses de pesquisa em torno das materializações do pulmão e da respiração, de como o invisível é concreto. Todavia, na lista que segue, busquei reunir trabalhos sobre o tema que explicitem as possibilidades abertas, assim como capturar um pouco da proliferação recente do tema, demonstrada pelos muitos textos de 2020. O leitor encontrará de pulmões industriais até a poética do ritmo da respiração.
* Mateus Aleluia é um cantor e compositor brasileiro. A epígrafe é uma fala do músico e foi retirada do documentário realizado sobre sua vida, “Aleluia, o canto infinito do tincõa”, dirigido por Tenille Bezerra (2020).
Imagem destacada: Vibrant. Paul Klee (1931)
Referências bibliográficas
ALLEN, Irma Kinga. Thinking with a Feminist Political Ecology of Air-and-breathing-bodies. In:OXLEY, Rebecca; RUSSELL, Andrew (Orgs.). Interdisciplinary Perspectives on Breath, Body and World. Body & Society, 26(2), pp. 1–27, 2020.
AHMANN, Chloe; KENNER, Allison. Breathing Late Industrialism. Engaging Science, Technology, and Society (6), pp. 416-438, 2020.
BERARDI, FRANCO. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. Ubu editora, 2020.
BRAUN, Lundy. Breathing Race into the Machine: The Surprising Career of the Spirometer from Plantation to Genetics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014.
CHOY, Timothy. Ecologies of Comparison: An Ethnography of Endangerment in Hong Kong. Durham: Duke University Press Books, 2011.
CHOY, Timothy; ZEE, Jerry. Condition—Suspension. Cultural Anthropology 30(2), pp. 210–223, 2015.
CRAWLEY, Ashon. Blackpentecostal Breath: The Aesthetics of Possibility. New York, ny: Fordham University Press, 2017.
FLEISHER, SORAYA. O “cansaço” como categoria norteadora das experiências de adoecidos pulmonares. Saúde Soc. São Paulo, 24(4), pp.1332-1348, 2015.
FERGIE, Deane; LUCAS, Rod; HARRINGTON, Morgan. Take My Breath Away: transformations in the Practices of Relatedness and Intimacy through Australia’s 2019–2020 Convergent Crises. Anthropology in Action, 27(2), pp. 49–62, 2020.
GARNETT, Emma. Breathing Spaces: Modelling Exposure in Air Pollution Science. In:OXLEY, Rebecca; RUSSELL, Andrew (Orgs.). Interdisciplinary Perspectives on Breath, Body and World Body and Society 26(2), pp. 55–78, 2020.
GÓRSKA, Magdalena. Breathing matters: Feminist intersectional politics of vulnerability. Doctoral Thesis. Linköping University – Studies in Arts and Science No. 683, 2016.
GRAHAM, Stephen. Life support: The political ecology of urban air. City 19(2–3), pp. 192–215, 2015.
INGOLD, Tim. Footprints through the weather-world: Walking, breathing, knowing. Journal of the Royal Anthropological Institute 16(S1), pp 121–S139, 2010.
IRIGARAY, Luce. The Forgetting of Air in Martin Heidegger. Austin: University of Texas Press, 1999.
JOLAOSHO, T. The Enduring Urgency of Black Breath. Anthropology News website, April 16, 2021. Disponível em: https://www.anthropology-news.org/index.php/2021/04/16/the-enduring-urgency-of-black-breath. [Acesso em: 16/05/2021].
KENNER, ALI. Invisibilities: Provocation. Society for Cultural Anthropology, 2013. Disponível em: https://culanth.org/fieldsights/invisibilities-provocation. [Acesso em: 16/05/2021].
Life of Breath. Disponível em: https://lifeofbreath.org/. [Acesso em: 16/05/2021].
LOW, Chris. Khosian wind: Hunting and healing. Journal of the Royal Anthropological Institute 13: S71–S90, 2007.
LANDE, Brian. Breathing like a soldier: Culture incarnate. The Sociological Review 55(S1), pp 95–108, 2007.
MACNAUGHTON, Jane; CAREL, Havi. Breathing and Breathlessness in clinic and culture: using critical medical humanities to bridge an epistemic gap. In: WHITEHEAD A, WOODS A, ATKINSON, S, et al. (Eds.). The Edinburgh Companion to the Critical Medical Humanities. Edinburgh University Press, 2016.
MACNAUGHTON, Jane. Making Breath Visible: Reflections on Relations between Bodies, Breath and World in the Critical Medical Humanities. In: OXLEY, Rebecca; RUSSELL, Andrew (Orgs.). Interdisciplinary Perspectives on Breath, Body and World. Body & Society, 26(2), pp. 30–54, 2020.
MBEMBE, Achille. Le droit universel à la respiration. AOC media. abr. 2020. Disponível em:<https://aoc.media/opinion/2020/04/05/le-droit-universel-a-la-respiration/>.[Acesso em: 06 out. 2020].
SREENATH, Nair. Restoration of Breath: Consciousness and Performance. Amsterdam and New York: Rodopi, 2007.
NIEUWENHUIS, Marijn. Breathing materiality: Aerial violence at a time of atmospheric politics. Critical Studies on Terrorism 9(3), pp. 499–521, 2016.
OXLEY, Rebecca; RUSSELL, Andrew. Interdisciplinary Perspectives on Breath, Body and World. In: OXLEY, Rebecca; RUSSELL, Andrew (Orgs.). Interdisciplinary Perspectives on Breath, Body and World. Body & Society, 26(2), pp. 1-27, 2020.
PACCILLO, Giovanna. Formas de visualização da respiração e a pandemia do novo coronavírus. Espiritualidade Institucionalizada. Disponível em: https://www.nues.com.br/formas-de-visualizacao-da-respiracao-e-a-pandemia-do-novocoronavirus/>.[Acesso em: 06 nov. 2020].
HARMAN, Elisabeth; BRABEC DE MORI, Bernd. Breathing Song and Smoke: Ritual Intentionality and the Sustenance of an Interaffective Realm. In: OXLEY, Rebecca; RUSSELL, Andrew (Orgs.). Interdisciplinary Perspectives on Breath, Body and World. Body & Society, 26(2), pp. 130-157, 2020.
RUSSELL, Andrew. Anthropology of Tobacco: Ethnographic Adventures in Non-Human Worlds. London: Routledge Press, 2019.
ROSE, GABRIELLE; MANDERSON, LENORE. More than a breath of difference: competing paradigms of asthma. Anthropology & Medicine, 7(3), 2000.
SLOTERDIJK, Peter. Terror from the Air. Los Angeles: Cambridge: MIT Press, 2009.
SOLOMON, Harris. Livin
g on Borrowed Breath: Respiratory Distress, Social Breathing, and the Vital Movement of Ventilators. Medical Anthropology Quarterly, 35(1), pp. 102–119, 2020.
SKOF, Lenart; HOLMES, Emily. Towards breathing with Luce Irigaray. In: Skof, Lenart and Holmes, Emily (eds) Breathing With Luce Irigraray. London and New York: Bloomsbury, pp. 1–14, 2013.
WILLLIANS, Karen. The Way In Is through the Breath. Society for Cultural Anthropology, 2019. Disponível em: https://culanth.org/fieldsights/the-way-in-is-through-the-breath. [Acesso em: 16/05/2021].
WAINWRIGHT, Megan. Sensing the Airs: The Cultural Context for Breathing and Breathlessness in Uruguay. Medical Anthropology,36(4), pp. 332-347, 2017.
Tag:bibliografia, ciência, respiração
Você também pode gostar
Membros do LAR publicam artigo sobre a chacina no Rio nas mídias e redes sociais religiosas
Olívia Bandeira, com a colaboração de Victor Merete, membros do LAR publicaram o artigo: Evangélicos e católicos da base do bolsonarismo reproduziram as narrativas do governo do Rio sobre narcoterrorismo, enquanto portais da Igreja Católica evitaram críticas diretas. Acesso em: …
Apocalipse nos trópicos reforça esteriótipos e desperdiça a chance de aprofundar o debate sobre religião e política no Brasil
A visibilidade de Malafaia também se beneficia dos monopólios digitais. O discurso inflamado e polêmico que foi atualizado nos últimos anos se adaptou perfeitamente aos algoritmos das redes sociais das grandes plataformas, que lucraram com o acirramento da polarização e …
Novo artigo na plataforma Religião & Poder, do @isernarede
Foi publicado um texto do pesquisador do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR/Unicamp), Renan Baptistin Dantas, que analisa um aparente paradoxo do cenário religioso fluminense: apesar da queda expressiva no número de católicos no estado do Rio de Janeiro, observa-se …
