“Espiritualidade indígena”: equívocos à luz de uma perspectiva ontológica
- Categorias Debates, Novidades, Virada ontológica
- Data 22 de maio de 2020
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Texto de Antonela dos Santos e Florencia Tola para o site DIVERSA, a tradução é de Luciana Alvarez
É claro que nem toda antropologia deve ser ontológica em suas preocupações, mas acreditamos que pode ser produtivo para a disciplina se alimentar da mudança de perspectiva que essa virada traz. Apresentamos duas cenas etnográficas derivadas de nossos trabalhos etnográficos com dois povos indígenas argentinos (tobas e ranqueles) e tentamos realizar um pequeno exercício de ontografia com base nos possíveis equívocos que constituem o terreno da espiritualidade.
“A terra é a nossa vida” é o lema de grande parte das reivindicações de terras dos toba (qom) em Buenos Aires (1). A assimilação terra-vida é transparente aos olhos de quem acompanha suas reivindicações e, além disso, é facilmente acessível àqueles que sustentam uma retórica sobre os povos indígenas como protetores de um meio ambiente cada vez mais degradado, distantes da lógica comercial e material própria das sociedades modernas. Sem dúvida, a terra é central para a vida e experiência de muitos tobas: seus ancestrais e grande parte dos adultos e idosos de hoje se vinculam intimamente a ela através da caça, pesca, colheita de frutas e mel, sonhos, conquista amorosa ou práticas xamânicas. O “monte” ou aviaq não apenas lhes fornece plantas, animais, madeira, remédios e água, mas também permite que numerosos toba mantenham relações com uma diversidade de seres não humanos que são centrais para a constituição do mundo e da consciência de si (ver também este texto de Tola no blog). Agora, por que essa relação com o território é expressa por alguns dos novos líderes qom como espiritual, mais que social?
Em um contexto marcadamente diferente, alguns ranqueles (rankülche) (2) da província de La Pampa refletem sobre o que significa ser indígena na atualidade, vivendo, geralmente, em contextos urbanos, sem necessariamente falar a língua e, em grande parte dos casos, tendo desconhecido ou negado sua etnia por longos períodos de tempo. Dentre o que desejam recuperar, a espiritualidade ocupa um lugar central, pelo menos para alguns líderes que expressam hoje em dia que “não fazer espiritualidade é pensar como um branco”. Geralmente ligada a “uma vida em liberdade e harmonia”, essa espiritualidade abrange várias questões, como a relação de uma certa submissão com a Ñuque Mapu (a “Mãe Terra”) e Vuta Chao (o “Grande Pai”) expressa em cerimônias de pedido e agradecimento (nguillatun), ou laços com os antepassados, considerados guias no ressurgimento. A espiritualidade também se refere, para muitos deles, ao imperativo de estar atento ao meio ambiente para relacionar-se com animais e outras entidades não humanas que podem comunicar anúncios, conselhos ou notícias, e à necessidade de ser respeitosos e cuidadosos nas interações com eles.
Concebida pelos mesmos ranqueles em oposição à religiosidade dos cultos evangélicos (dos quais, por outro lado, muitos deles participam ou participaram até recentemente), essa espiritualidade às vezes é descrita como “mais viva” e “mais sentida”. Onde o culto não pode fornecer sinais visíveis, de acordo com vários de nossos interlocutores, ela fornece sinais concretos. Se está ligada ao visível, se implica a agência do sujeito que “faz espiritualidade” e se ativa o afetivo, por que, então, ao abordar a espiritualidade ranquel, não nos perguntamos, antes de mais nada, o que é o visível, o sensível e a ação para eles?
Se pensarmos nos termos da antropologia ontológica, o campo da espiritualidade parece ser um erro indubitável. Em vez de tomar como certo, deveríamos nos perguntar – sem ignorar as diferenças internas em cada um desses povos – o que é, para tobas e ranqueles, o espiritual e a que universos remete. Ou seja, quando nossos interlocutores toba referem que a Terra é vida (ou que os pássaros falam, que nos sonhos encontraram um parente falecido ou que viajam para o céu, para citar outros exemplos), é necessário começar com a pergunta sobre o que é a terra e o que é a vida (o que são os pássaros, a comunicação, os sonhos ou o céu) para eles. Da mesma forma, quando os ranqueles com quem trabalhamos conversam sobre recuperar sua espiritualidade, é possível questionar a associação a priori pensada como universal entre espiritualidade-religiosidade-transcendência e nos perguntar o que é “fazer espiritualidade”. Nossas etnografias nos levam a pensar que a associação terra-vida dos toba e o desejo Ranquel de recuperar sua espiritualidade estão relacionados a uma vontade explícita de certos membros desses grupos de manter ou reconstruir relações concretas com seres não-humanos (Vuta Chao, os donos da montanha, os mortos, os animais) seguindo regras socialmente pautadas. Nesse sentido, a espiritualidade em questão, longe de se referir a laços espirituais, entidades transcendentes e dogmas de fé compartilhados (seguindo nossa definição do termo, ligada ao religioso), se referiria às relações tangíveis que os sujeitos particulares, em sua composição ativa do mundo, estabelecem com outros seres imanentes.
(1) Os toba pertencem – junto com os Pilagá e os Mocoví – à família lingüística Guaycuru e se autodenominam qom. O termo qom deriva do pronome pessoal do plural na primeira pessoa (qomi, qom: gente, –i: sufixo que pluraliza). Desde a época pré-colombiana, os grupos do Chaco compartilhavam uma tradição caçadora-coletora, formas comuns de organização sócio-política e aspectos de sua cosmologia. Hoje em dia, os qom vivem em comunidades rurais, urbanas e peri-urbanas sedentárias, nas províncias de Formosa e Chaco, e formaram bairros em cidades como Rosario, La Plata, Buenos Aires, entre outras. Florencia Tola realiza trabalha de campo entre os tobas (qom) de Formosa desde 1997.
(2) Os ranqueles ou rankülche (“povo do canavial”, de rankül-cortaderias ou canavial [Cortaderia selloana] e -che, povo) eram tradicionalmente grupos de grande mobilidade que habitavam o centro da República Argentina. Após as campanhas militares do final do século XIX, os ranqueles foram declarados extintos ou, na melhor das hipóteses, no caminho irrevogável de miscigenação e aculturação. No entanto, no final dos anos 80 na província de La Pampa, um grupo de pessoas começou a ganhar visibilidade política ao se autodescrever como ranqueles e iniciar um processo de reemergência vigente até hoje. Atualmente, os ranqueles se encontram assentados em áreas rurais e urbanas de La Pampa, San Luis, Córdoba e Buenos Aires. Antonela dos Santos realiza trabalha de campo com ranqueles na província de La Pampa desde 2013.
Este texto faz parte de um trabalho mais amplo sobre as características e a relevância da virada ontológica na antropologia, no qual são analisados seus principais aspectos (tendências inglesa, francesa e norte-americana), refletindo sobre o escopo e as limitações da proposta metodológica que a virada contém e discute a operacionalidade dessas abordagens às realidades etnográficas com as quais trabalhamos na Argentina. O artigo completo foi publicado na revista de antropologia Avá (da Universidade Nacional de Misiones) e pode ser visto aqui.
Antonela dos Santos é bolsista de doutorado do CONICET, Sección de Etnología, Instituto de Ciencias Antropológicas (FFyL, UBA). Membro do Núcleo de Etnografía Amerindia (NuEtAm).
Florencia Tola é pesquisadora independente do CONICET, Sección de Etnología, Instituto de Ciencias Antropológicas (FFyL, UBA). Pesquisadora associada ao Centro EREA dol LESC (UPO/CNRS). Membro do Nucleo de Etnografia Amerindia (NuEtAm)
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