A virada ontológica e a radicalização da distinção entre o sagrado e o profano
- Categorias Debates, Novidades, Virada ontológica
- Data 13 de maio de 2020
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Texto original de Nicolás Panotto (GEMRIMP) para o site DIVERSA, tradução de Giovanna Paccillo
Meu interesse pela teoria da virada ontológica começou durante o trabalho da tese, quando tentava indagar sobre o impacto do apelo ao “mundo espiritual” dentro do campo evangélico em geral e do pentecostal em particular, especialmente em relação à construção de imaginários políticos. Como explicar o impacto dessa realidade que existe para muitos que creem, concretamente, que às vezes é até “palpável”, do lado deles e acima , formando parte de sua vida cotidiana, quase como uma dimensão paralela à sua própria existência histórica, onde as “forças” divinas e demoníacas se encontram em tensão (ou em “batalha”, como dizem alguns grupos), com a percepção de uma marca concreta e real em suas vidas e projeções cotidianas? (Ver Panotto 2016).
Considero que há duas possíveis contribuições da virada ontológica para a sócio-antropologia da religião: uma complexificação da análise dos processos de identificação religiosa que nos permitem superar alguns reducionismos dentro das teorias de identidade (como o famoso debate Geertz-Asad), e a dinâmica do humano/ não humano como forma de definir o religioso a partir da inscrição de um espaço de tensão em determinadas segmentações sócio-históricas.
No que diz respeito a primeira contribuição, a teoria Ator-Rede (TAR) afirma que as forças de ação não devem ser apreendidas por nenhum campo ou assunto específico – seja a “sociedade”, a “cultura”, a “ideologia”, a “religião” – mas permanecer aberta a partir de campos menos precisos e mais recentes, com uma reserva ao que Bruno Latour chama de indeterminação da ação (Latour, 2005: 73). Isso nos ajuda a ver a dimensão subjetiva das crenças não somente como resultante de ações particulares ou consequência de mediadores institucionais, mas como segmentações mais complexas e fluidas, entre processos de subjetivação e singularização.
Sobre o segundo ponto, por exemplo no meu caso de estudo em particular, o lugar do não-humano como dimensão ontológica que excede a sobredeterminação discursiva de um universo simbólico específico – com suas derivações hermenêuticas e subjetivas –, me permitiu entender a tensão mundo/espírito no pentecostalismo, não apenas pela contraposição entre o sagrado e o profano, mas como uma tensão que sobrevive e que está inscrita em várias saídas e manifestações, em um mesmo cenário histórico. Além disso, de uma perspectiva filosófico-hermenêutica, essa dimensão do não-humano compreende um campo não passível de demonstração, de não-representação, de excesso de sentido, não apenas em termos discursivos, mas precisamente ontológicos, que não necessariamente possui em si mesmo uma particularidade significativa única, mas é entendida como instâncias que dão lugar e possibilitam manifestações plurais.
Mas é aqui que encontro, por sua vez, a limitação dessa abordagem: a diluição do epistêmico em nome do ontológico. É possível ver isso na seguinte definição de Bruno Latour (2005: 22) quando afirma que “não é necessário ‘explicar’ a religião por forças sociais porque em sua definição mesma – e em seu nome – vincula-se entidades que não são parte da ordem social”. Essa posição responde a essa reação, por vezes dramatizada, da virada ontológica, de querer excluir qualquer mediação discursiva ou epistêmica como marco predominante para compreender o social. Nesse caso, considero que as dimensões discursivas, simbólicas, performáticas e rituais do religioso são demasiadamente deixadas de lado, de forma desnecessária.
Os trabalhos de Mario Blaser corrigem esse excesso a partir de sua ideia de ontologia política: “[A] ontologia política não se refere a uma realidade supostamente externa e independente (a ser descoberta ou representada com precisão); ao contrário, ele está interessado em como a realidade é construída, incluindo sua própria participação nela. Em resumo, a ontologia política tem a ver com contar histórias que abrem espaço e colocam em prática o pluriverso” (Blaser, 2016: 552). Sua proposta de performatividade narrada (Blaser, 2013) oferece uma virada ontológica à própria epistemologia, onde a representação (discursiva e simbólica) não é uma dimensão além ou limitante do ontológico, mas o conforma. Voltando à definição de religião oferecida por Latour, a proposta de Blaser se vincularia à categoria de religião vivida, na qual as dimensões subjetivas da crença, que tencionam as fronteiras institucionais e simbólicas da religião, não representam apenas “outras” representações mas formas de construção de pluri-versos religiosos com legitimidade própria, onde a prática/hermenêutica/episteme e ontologia religiosa andam de mãos dadas em sua dimensão mais fundamental, tocando, tensionando, recriando, negando e reafirmando as múltiplas interseccionalidades institucionais circulantes.
Bibliografía
Blaser, Mario (2013) “Ontological Conflicts and the Stories of Peoples in Spite of Europe. Toward a Conversation on Political Ontology”. Current Anthropology. Volume 54 (5): 547-568
— (2016) “Is another cosmopolitics possible?”. Cultural Anthopology. Vol. 31 (4): 545–570
Latour, Bruno (2005) Reensamblar lo social. Una introducción a la teoría del actor-red. Buenos Aires: Manantial
Panotto, Nicolás (2016) “Fe que hace la diferencia: prácticas religiosas, ontología(s) y construcción de lo público. Un caso dentro del pentecostalismo argentino”. En Liminales. Escritos sobre psicología y sociedad. Universidad Central de Chile 29, Vol 1. N° 10. Noviembre 2016 / 29-45
Nicolás Panotto é doutor em Ciências Sociais e mestre em Antropologia Social pela FLACSO Argentina. É também licenciado em Teologia pelo Instituto Superior Evangélico de Estudos Teológicos – ISEDET (Argentina).
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